Relatório de viagem, Maturuca – Região Serras

RELATÓRIO DE VIAGEM, Maturuca – Região Serras, 14/24 de setembro de 1993.

Loretta Emiri

A saída de Boa Vista tinha sido marcada para o dia 13, segunda-feira; mas o caminhão da Secretaria de Educação só foi disponível a partir de terça-feira à tarde. Viajei em companhia do diretor da escola de Maturuca, professor Inácio Brito. Para comermos, paramos num lugar chamado Jurumu; como os carros dos garimpeiros não estavam podendo passar, ouvimos dois brancos, chegados de moto, dizerem que era preciso matar todos os índios para acabar com aquela situação.

Seminário de estudos.

Nos dias 15-16-17 de setembro de 1993, na escola indígena da maloca Maturuca assessorei o Seminário de Estudos que os índios chamaram de “Caminhando e construindo a escola indígena”. Participaram 35 pessoas, entre as quais o diretor, professores, alunos de 8ª série e o grupo de animação da escola de Maturuca; bem como professores vindos das malocas Pedra Preta, Caracanã, Camararem, Socó, Monte Moriá, Enseada, Ticoça, Pedra Branca, Willimon, Lilás, Barreirinha. Vários foram os assuntos abordados, entre os quais: ensino bilíngüe, legislação da educação escolar indígena, Regimento Piloto para as escolas indígenas, Magistério Indígena. 

Em relação ao bilingüismo, saíram estas considerações: quando um professor começou a lecionar em Macuxi, os alunos deixaram de aparecer; outro disse que encontra dificuldade porque não fala a língua materna; uma mulher confessou de se sentir despreparada para lecionar em Macuxi; alguns não conhecem termos usados na cartilha pois, provavelmente, trata-se de dialeto diferente; há necessidade de padronizar mais o Macuxi, de resolver dúvidas relativas à grafia de certas palavras, de dispor de material didático. 

Para estimular a produção de tal material, em Macuxi ou nas duas línguas, foi realizado um levantamento de técnicas e conteúdos. Escrever o alfabeto. Organizar listas de palavras, frases, dicionários. Realizar pesquisas por áreas temáticas: história da região, da maloca, da escola, do contato; animais, peixes, aves; partes do corpo; plantas em geral, plantas medicinais, plantação; trabalhos indígenas e comunitários; mapas da região, serras, rios, lagos, retiros, sítios; mitos, lendas, orações, cantos, festas de casamento. Realizando as pesquisas, envolver ativa e criativamente a comunidade. Espaço e atenção deve ser dada à oralidade mandando, por exemplo, descrever fatos, acontecimentos, situações; realizar encontros culturais falando as duas línguas.

Alguns professores me perguntaram o sentido de palavras simples, comuns; isso me ajudou a perceber que a maioria deles não domina o português, sendo bem mais Macuxi do que parece num primeiro momento. Quero dizer que a roupa que eles vestem não os torna automaticamente brasileiros. Passei, então, a usar uma linguagem mais acessível e a dar mais explicações em relação a termos específicos e conceitos. Acho que num próximo encontro deveria ser dada mais ênfase ao Macuxi, reservando um espaço para os participantes se expressarem livremente em sua língua.

A fim de melhorar sua própria formação, alguns professores disseram que gostariam de ser orientados no uso do dicionário, na elaboração de planos de aula e relatórios, na realização de avaliações; deveriam ser pensados cursos para supervisores (por exemplo, oficialmente Elínia o é, sem nunca ter sido treinada para tanto); linguística e alfabetização devem ser tratadas non cursos de capacitação; tem que equipar as escolas de pequenas bibliotecas, pois a falta de livros impede a realização das pesquisas.

O tema mais debatido foi o Magistério Indígena. Houve consenso por parte do grupo em relação à proposta de implantação do magistério conforme sua versão preliminar. Os participantes do seminário elaboraram um documento final para, justamente, evidenciar e reafirmar a importância da implantação do magistério, exigindo que ele seja específico, diferenciado e oferecido exclusivamente aos índios (ver documento assinado aos 18/9/93).

Encontro regional da OPIR.

Aproveitando a presença de professores vindos das escolas da região Serras, realizamos um encontro da OPIR, cujas finalidades foram: entender qual é o papel específico do NEI e da OPIR, avaliar a atuação das duas realidades e o desempenho dos professores. Percebeu-se que há muita confusão, e é preciso que as duas entidades diferenciem suas propostas e iniciativas. Todos os professores devem se sentir parte da OPIR, acompanhando, fiscalizando, assessorando e cobrando da coordenação da mesma. Deve haver uma maior articulação entre os envolvidos.

Avaliação.

A avaliação do seminário deu-se na igreja com a comunidade reunida, a qual acabou realizando uma verdadeira avaliação da educação formal em geral, e da escola de Maturuca em particular. Foi um momento muito intenso, palpitante, um grande debate. A maioria das pessoas falou em Macuxi. Com decisão e garra tomaram a palavra também várias mulheres. Chorando, uma delas contou fatos vivenciados quando estudava no internato; por exemplo, quando queriam comer peixe, padres e freiras mandavam os alunos pescar e, em outras situações, os batiam com palmatória. Todo mundo percebeu a diferença que passa entre “escola para índio” e “escola indígena”. A escola no passado serviu até para perder a língua; hoje deve ser assumida pelos índios, que devem fazer “seu varadouro”; deve servir para defender direitos, mas foi interessante ouvir que há professores querendo estudar para se tornarem pajés. Foi julgada muito positivamente a colaboração entre comunidade e professores, os quais perceberam de estar sendo por ela apoiados. Em tom lírico e convicto, o diretor comparou a comunidade a “coração”, “raízes”. Algumas pessoas manifestaram seu carinho e preocupação para comigo: vinda de tão longe, mulher de coragem que deixou família e amigos para estar aí do lado deles, uma não-índia lutando pelos índios. Como maneira de valorizar a cultura oral tradicional, li um trecho do depoimento de Gabriel Viriato Raposo, escutado com emoção e interesse. 

A seguir são reunidos pontos positivos levantados durante a avaliação. Foi um encontro muito bem organizado. Para alguém foi o melhor do qual participou. Outra pessoa diz que foi o encontro que mais o fez pensar. Ajudou para dar mais valor à profissão de educador. Foi muito proveitoso por ter sido dirigido exclusivamente aos índios. Foram repassadas muitas e importantes informações; percebeu-se que a articulação acontece quando, justamente, há este repasse de informações e subsídios; além do mais, se manter informados significa formar-se. Houve satisfação pelo fato dos professores, reunidos desde segunda-feira, terem tomado a iniciativa de começar os trabalhos antes mesmo da assessora e o diretor chegar. O único ponto negativo foi, justamente, o atraso dos dois, devido a problemas de transporte; complicação que acabou reduzindo o tempo planejado para a assessoria. 

Passeio.

Inácio me convidou para dar um passeio até o topo da Serra de Maturuca. Na língua Macuxi, a palavra maturucaderiva de uma frase em que está incluído o verbo estrondar, estalar; a mitologia explica que do interior da serra vêm estrondos, estalos, estouros. Saí da maloca no domingo de manhã com Inácio, sua mulher e umas outras pessoas. Pelo caminho me indicaram plantas usadas para prevenir a cárie, curar a diarreia, dar banho nos meninos para que soltem catarro. Me mostraram também plantas com que fazem vassouras. Gravado na pedra vi um lindíssimo desenho de peixe estilizado. Encontramos cacos de panelas de barro pois, pelo que me contaram,  antigamente, quando tinha invasões, os Macuxi fugiam em cima da montanha. 

Do topo da montanha olhamos em direção à Guiana que, me explicaram, começa do outro lado do rio Maú (Ireng, na língua Macuxi). Me indicaram a direção das várias malocas da região Serras. Me mostraram também os estragos feitos pelos garimpeiros. Contaram que em 1985 balsas e maquinários passavam dentro da maloca de Maturuca para alcançar os garimpos de Mina Velha, Mirandão, Mina Nova, Capim, Cachoeira da Onça, Boca do Igarapé do Maturuca. Os garimpeiros chegavam com cachaça, organizavam festas na maloca e abusavam das mulheres. Em seguida levaram prostitutas nos garimpos, das quais podiam aproveitar também os Macuxi. Aos 5 de setembro de 1988 o garimpeiro Izan Pereira Matos matou a tiros o Macuxi Donaldo Wiliam. Os Macuxi começaram a se organizar no começo de 1992, denunciando os acontecimentos e a invasão de suas terras; em agosto fizeram uma barreira, só deixando entrar caminhões para retirar os maquinários, até que ficaram só um homem e quatro mulheres. Aos 23 de novembro o Inácio foi baleado; a polícia veio de avião e retirou o homem que feriu o Inácio e as quatro mulheres. 

Na véspera do passeio (18/9/93), em Maturuca chegou a notícia que no dia 13 passado três garimpeiros armados tinham invadido a maloca Canawapai, prendendo os índios dentro dum curral enquanto procuravam um documento, e tentando espantá-los para que abandonassem o lugar. Do topo da montanha me indicaram também a direção em que Canawapai se encontra.

Voltando, perto dum buritizal Inácio viu um veado; foi se aproximando-lhe cautelosamente e, quando o veado fugiu, foi atrás dele deixando-me abismada de tão ligeiro que corria. Meus acompanhantes tentaram pegar um tatu. O caminho de volta parecia nunca acabar. Me cansei muito e tive até medo; uns trechos eram tão íngremes que, para não olhar no vazio andei de gatinhas e caminhando para trás. Paramos na fazenda do Inácio onde, pela primeira, e provavelmente última vez na vida, montei um cavalo. 

Museu de Maturuca.

No dia 20, segunda-feira, realizei uma reunião com as professoras Elínia e Rosilda, responsáveis do acervo da escola de Maturuca, acervo que consiste em objetos de artesanato realizados pelos alunos. O diretor espera dispor, no futuro, de um local onde organizar um verdadeiro museu. Até que isso aconteça, sugeri colocar uma prateleira na sala onde o artesanato é guardado, e nela colocar o que a escola já possui de livros, jornais, boletins, fotos, fitas, livros produzidos por alunos e professores. Repassei alguns critérios para organizar esses materiais. Sugeri também finalizar as pesquisas a serem desenvolvidas pelos alunos, a fim de que se tornem parte integrante do próprio acervo documental do museu. 

Materiais por mim doados: um quadro realizado a partir de uma foto que bati de meninos Macuxi; Mulher entre três culturas; fita com diálogos cerimoniais Yanomami; Wayãmu n. 3; “Concurso diferenciado para professores indígenas em Roraima”, 4/93; PTA do NEI, 8/93; “Voando alto em Roraima”, 8/93; “A fome não é brincadeira” (trecho do depoimento de Gabriel Viriato Raposo).

Escola de Maturuca.

No dia 22 realizei uma visita oficial à escola de Maturuca. Da mesma dependem 156 alunos, dez professores, uma merendeira e quatro voluntários que trabalham espalhados pela região. Os alunos, pintados e enfeitados, me receberam com cantos, marchas e danças. Foi uma acolhida bem emocionante. Assisti às aulas, apreciei métodos usados, conversei com os professores, merendei com os alunos. Na entrada da escola plantei mudas de curauá trazidas do meu quintal.

Pelo que percebi, em relação ao ensino bilíngüe a experiência de Maturuca é a mais interessante do Estado. O bilingüísmo é exercitado em todas as disciplinas, da 1ª à 8ª série, não limitando-se à alfabetização na língua materna para depois passar a usar o português apenas. Aliás, por encontrar dificuldades na escrita e codificação do Macuxi, a professora Elínia alfabetiza em português, desenvolvendo o Macuxi oralmente; por achar que a cartilha Macuxi que está sendo usada é pobre, ela até organizou um livro de exercícios (Elínia Maria de Souza, 1992).

Das tantas positividades constatadas durante a visita, as que mais me impressionaram foram: a criação de uma disciplina chamada “Tradições indígenas”; a reflexão que os alunos são levados a fazerem sobre razões e motivações das profissões que irão desenvolver, especialmente a de educador; os cantos, as danças, as dramatizações realizadas por alunos e professores, e que são apresentadas à comunidade no “Dia do índio”; a exigência apontada pelos professores de dispor de um espaço físico onde se encontrarem para planejar e trabalhar em conjunto.

Devido à sensibilidade do Inácio a escola de Maturuca tornou-se, de fato, um Núcleo Regional de Educação Indígena. Muitos dos alunos que aí estudaram voltaram às suas aldeias para lecionar como voluntários, gradualmente se capacitando como professores. A grande angústia do diretor é o transporte, para poder visitar as escolas e dar acompanhamento aos professores; coisa que, informalmente, já faz deslocando-se a pés, a cavalo, o de moto (comprada especialmente para isso).

Retorno.

Tinha sido combinado que um carro da Secretaria de Educação viria me apanhar para regressar a Boa Vista. Esperei-o inutilmente. Me senti hostilizada e boicotada pelo diretor e equipe do NEI. Ainda bem que apareceu o caminhão do CIR, com que saí de Maturuca no dia 23. Demos uma grande volta para deixar dois tuxauas em suas malocas, e dormimos na segunda maloca. Na Ponte do Urucuri tinha a PM, que zombou e humilhou os índios e submeteu meus pertences a perquisição. Segundo eles tinha o padre Jorge atrás das decisões e postura dos índios. Só chegamos em Boa Vista na sexta-feira de manhã.

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