Vida longa ao termo “índio”

Na Itália frequentei escolas de ensino médio; as disciplinas mais amadas eram Latim, Italiano, Francês. Quando em 1977 me mudei para a Amazônia brasileira, bastante rapidamente aprendi o Português por derivar ele também do Latim. Era a época em que os indigenistas estrangeiros eram vistos como espiões a mando de outros Países; para non correr o risco de ser expulsa, me naturalizei brasileira. Na língua portuguesa eu sonho, e também escrevo poemas, mas fico uma estrangeira porque uma nova bagagem linguística nunca alcança a profundeza social, histórica, cultural de una língua materna.  Chegando entre os yanomami, aprendi logo o significado das palavras genocídio e etnocídio, porque estavam escritas na pele deste sofrido, amado povo. Em junho de 2022 me jogaram contra uma pedra embrulhada em papel contendo palavras arrogantes; o termo “epistemicídio” me feriu mais que a pedra porque, desvirtuado, foi utilizado para me insultar. Cinco meses depois, aqui vai a elaboração do meu pensamento: não é a resposta àquelas palavras arrogantes; é apenas o resultado do aprofundamento realizado antes de reiterar que a palavra “índio” não pode ser justiçada para impor o uso exclusivo do termo “indígena”. 

A principal acepção do vocábulo “índio” é “indiano”, e tem a ver com as Índias onde Cristóvão Colombo acreditava ter chegado. Naquele tempo, Índias era a designação que os europeus davam não só à Índia propriamente dita, mas a todo o sudeste asiático, por isso o termo é no plural. Tendo Colombo chamado os aborígines americanos de índios, esse nome ficou consagrado nos séculos dos séculos. Quanto a “indígena”, o termo deriva do Latim; portanto existia bem antes dos europeus chegarem às Américas, significando “originário de um País ou de uma localidade”, “pessoa natural do lugar ou País onde habita”. A palavra “indígenas” passou a ser usada para referirmo-nos aos “ameríndios” embora, como vimos, etimologicamente nada tem a ver com “índios”. A semelhança fonética entre índio e indígena alimentou a confusão contribuindo a formar a crença que são indígenas somente os habitantes do continente americano. Até hoje, em espanhol os indianos, habitantes da Índia, são chamados “indios”; enquanto que, em Inglês “indian” significa indistintamente “indiano” e “índio”. A ironia está no fato que, embora disfarçado, o termo “índio” é parte integrante da palavra ameríndio (amer-índio).

Há alguns anos, circula uma polêmica entorno da palavra “índio”. Seus fomentadores sustentam que o termo é pejorativo e que é usado para definir povos muito diferentes entre si; esses fomentadores até chegaram a se manifestar a favor do uso exclusivo da palavra “indígena”. Onde está a evidência científica que “índio” tem conotação pejorativa? Há alguma estatística comprovante que, majoritariamente, o termo é empregado em tom depreciativo? Hoje em dia ninguém ignora que no Brasil há 305 etnias, com suas diversidades sociais, culturais, linguísticas, cada uma com seu nome próprio. Quando se fala ou se escreve a respeito de um determinado povo, logicamente se utiliza seu nome específico; quando se fala o se escreve a respeito de indígenas em geral, chama-los de “índios” não é diferente de apelidar de europeus tantos os portugueses quanto os franceses e italianos. Epistemologia é o estudo de hipóteses e princípios resultados de diversas ciências, e funciona como uma ferramenta para a compreensão do conhecimento produzido pelas sociedades através dos métodos científicos e dos saberes filosóficos. Quando uma forma de saber é negligenciada, visando o apagamento do saber de um povo, ocorre o epistemicídio. Epistemicídio é um termo normalmente utilizado por Boaventura de Sousa Santos, e também por autores que analisam a influência da colonização europeia e do imperialismo capitalista. Essencialmente, o epistemicídio é o apagamento das contribuições científico-filosóficas das populações não assimiladas pela cultura branca e ocidental; é um subproduto do colonialismo instaurado pelo avanço imperialista europeu e norte-americano sobre os demais povos do mundo. 

Em nível institucional a palavra “índio” recorre desde a criação, em 1910, do SPI – Serviço de Proteção aos Índios, que em 1967 tornou-se FUNAI – Fundação Nacional do Índio. Em nível acadêmico inúmeros são os estudos antropológicos, linguísticos, sociológicos, históricos que no título enaltecem a palavra “índio”. A produção científica contribuiu a embasar, nortear a atuação dos próprios índios e de seus aliados; contribuiu também a modificar a percepção que a população envolvente tinha dos povos indígenas por desconhecer seus valores, saberes, usos e costumes.  Na luta pela terra tombaram índios e indigenistas. A luta que juntos travaram forçou os constituintes a escreverem a nobre palavra “índio” na Constituição de 1988, garantindo direitos básicos para as etnias brasileiras. Certo dia ouvi um novo-indígena afirmar que “índio” é um número atômico, um elemento da Química. Embora trata-se apenas de uma palavra, a tentativa de estrangulamento do termo “índio” é epistemicidio também, sendo que através desta palavra passaram a história, a cultura, a luta, os saberes, os direitos, e este multifacetado patrimônio foi escrito com sangue e paixão. Dedico este texto aos amigos do Facebook que fazem questão de colocar o termo “índio” antes de seu nome próprio; aos indivíduos que, assumidamente, de si mesmos dizem “eu sou índio brasileiro”; aos que se orgulham de serem “índios”; aos incontáveis índios mortos assassinados para assegurar terras e direitos a seus descendentes.

Loretta Emiri, novembro 2022.

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